Mais uma vez eu olhava o relógio. Impaciência... impaciência...
“A ciência dos meus desejos colididos”. Ao passo de cada segundo eu queria destruir tudo... E, ao mesmo tempo, consumi-la de uma vez só. “E ela?!” Ela sempre atrasada. Perdida entre seus vestidos (como eu os odeio! Por a deixarem tão insuportavelmente... “linda”.) ou nas vitrines de um shopping qualquer.
Ela entraria pela porta, sem me dizer nada, com um lindo sorriso entre os dentes, um misto de felicidade e deboche das minhas fraquezas... Como só ela sabia fazer. Jogaria a bolsa no canto da cama, sentaria sobre a minha escrivaninha e os papeis dos textos que escrevo. Acenderia um daqueles malditos cigarros baratos e diria o quanto, supostamente, ainda somos “iguais”.
Algo dentro da minha cabeça de repente gritou:
“SEU COVARDE!”
Como um estalo em dor daqueles provocados quando consumimos gelo rápido de mais. Minhas idéias se misturavam em um balé caótico de uma sopa de letrinhas servida “à moda” mandarim. Eu queria me levantar da cama, esperá-la no saguão do hotel (o lugar mais impessoal possível). Mas tudo que consegui foi ir ate a garrafa mais próxima e afogar meu pânico em uma doze dupla e seca de uísque.
Peguei o copo, sentei-me na cama e encarei o liquido âmbar dentro dele. Estava ali, na minha frente, pra mim, algo semelhante aos olhos dela: Um recipiente límpido e inocente, a garrafa mágica, o “corpo”, que guarda um pequeno demônio arredio. O que eu quisesse ou pretendesse fazer não mudaria nada. Já que eu não faria nada além do que ela planejasse ter.
Um ruído seco invadiu meus ouvidos e me acordou de meu “pequeno transe”. O barulho dos saltos finos sobre o piso de madeira velha dos corredores. Como o “tic tac” de uma contagem regressiva que antecipa uma explosão eminente. Cada vez mais... E mais perto, fazendo os pêlos do meu corpo se arrepiarem de uma vez só.
Os passos pararam frente a minha porta. E mais do que os três meses que haviam se passado, aquele segundo de silêncio era eterno e enlouquecedor.
Eu penseiem tudo. Eu fiz todos os planos possíveis e imagináveis ali:
Terminar tudo. Pedi-la em casamento... vi a vida que teríamos daqui a oito anos, os filhos e o divórcio. Ou algemá-la na cama, nua, e deixá-la sem as chaves. Matá-la com o abridor de cartas e enrolar seu corpo gélido no tapete persa. Mas eu não soube me decidir... Então, permaneci calado... Imóvel, tão petrificado quanto o mogno dos moveis do quarto. O que eu podia fazer? Ela era minha maior fraqueza. E ela sabia.
Ao passo que a porta era aberta senti aquele “velho conhecido” invadir o quarto: O perfume dela, que pra mim era um tipo de veneno tóxico que, ao mesmo tempo, inspirava e me fazia gostar menos de viver.
Ela fez como eu previ. Passou, me roubou o copo, e sentou-se sobre a escrivaninha. Cruzou as pernas deixando desvendar carne da cocha branca entre o preto do vestido e a meia. Olhei mais um pouco e revi uma pequena parte da tatuagem, as rosas vermelhas que ornamentavam meus sonhos mais impuros.
Ela bebeu um pouco do uísque e pôs o copo em cima de algumas das minhas folhas. Acendeu um cigarro e o tragou. O toque tão delicado... Tão “na ponta dos dedos”... Que às vezes parecia ter desprezo às coisas que tocava.
_ Como vai meu bem?
Ela interrompe meus pensamentos, tragou mais uma vez o cigarro, soltou uma nuvem de fumaça e continuou. Eu tinha que admitir: ela tinha sua própria neblina e aquilo lhe trazia uma aura de mistério particular
_ Eu senti saudades.
A respondi com um olhar cético.
_ Serio! Eu senti saudades... mas achei melhor não interromper sua vidinha tão “harmoniosa” ... Eu até pensei em te ligar...
Ela tragou mais uma vez e soltou à fumaça em um suspiro mais lento que o comum... Ela fazia bem seu papel, como uma atriz veterana, que sabia se aproveitar de cada momento em que a minha força de vontade me traia.
_Mas você sabe como sou desorganizada... E sempre acabo perdendo os números... Enfim... Como você está?
Respondi em um lance áspero e curto, buscando me esquivar de detalhes, agora, indesejados.
_ Bem.
Ela deu um leve sorriso como quem tivesse obtido mais respostas do que eu havia dado.
_ Ótimo! Estou satisfeita. Um dia desses eu passei pela Avenida Passos e vi seu novo livro na vitrine de uma livraria(e ela continuou com ar de riso). Você bem que podia ter me mandado um exemplar autografado, seu mal agradecido! A final... Você sempre disse que eu era “sua fonte inspiração mais promissora”.
_Desculpe. Erro meu. Te mando um de presente de natal.
_ Que delicado... Mas eu esperava “outro” tipo de presente... (ela sorriu com todas as más intenções do mundo e continuou) E como vai a vida? A família? Sua mãe ainda continua me vendo como uma das pragas do Egito? (deu um leve sorriso)
_ Sim... Ela tem suas razões pra isso... (ressaltei)
_E... Como vai Helena? A mesma garotinha ingênua de sempre... Que acredita que isso são as consultas com seu analista?
“Helena”... Ao pensar nela um nó acido subiu garganta acima e me engasgou.
_Sim. Ela esta bem. (parei por um instante... e disse sem mais rodeios) Nos casaremos no sábado.
Eu vi as feições dela se mutarem. E a ironia, tão natural, que tagarelava se cala, dando lugar a um silêncio áspero.
Entretanto, a surpresa não era nada que não pudesse contornar. E com uma maestria “divina” ela recompôs sua mascara, pegou o copo, deu um grande gole, sorriu, e voltou ao tom habitual.
_ Bom... Meus parabéns... Acho que não serei convidada pra ser uma das madrinhas, eu suponho. (Bebeu o resto do uísque que havia no copo e o pôs novamente sobre as folhas.)
_ Sim. A sua presença não é esperada... E só faltam dois dias.
_ Se quer posso te dar meus “pêsames” na cerimônia religiosa... Vai que a sua mãe resolve testar a teoria dela sobre “eu e água benta”?... E eu detestaria manchar um dos meus vestidos Prada.
Ela me fitou por instantes ate que um sorriso cínico e dissimulado viesse à tona. Levantou-se, pôs a guimba do cigarro no cinzeiro, ajeitou os cabelos... E o mover de seus braços e dorso me seduziam com peças de um jogo hipnótico do qual meus olhos não conseguiam se desvencilhar. Veio em minha direção, andando calma e graciosamente, uma tigresa escondida na savana a espreita do jantar.
Seus olhos me devoravam... E os meus... A ela.
Ela se aproximou e se debruçou sobre o meu corpo, me empurrando para a cama, deixando meu rosto imerso nos odores que sua nuca e cabelos exalavam. Sentia o toque da ponta macia de seus dedos acariciarem meu peito sobre a blusa, quase que como gotas de água gelada, que causa arrepios inesgotáveis, quando correm sobre o corpo quente.
Eu podia sentir o hálito quente de sua boca sobre meu ouvido enquanto ela sussurrava besteiras.
_ Hum... Então isso se torna a sua... “Despedida de solteiro”. Que pena... Você deveria ter chamado mais algumas velhas amigas... Quem sabe... Nós nos divertiríamos juntos.
Ela levantou seu dorso, deixando-me preso entre suas pernas enquanto retirava o vestido. O correr do tecido sobre a pele... O perfume e o toque... Era como se cada detalhe dela fosse um verso de um feitiço antigo.
Agora eu podia contemplar a mais perfeita, integra, imagem... “As Rosas”... O vermelho-sangue que tingia... Um desenho lindo. Sim. Eu o conhecia melhor ate do que os meus próprios versos... Eram quinze rosas. Algumas ainda em botão... outras... desabrochadas, “Colombianas”, grandes e vivazes... envoltas em um ramo de folhagens e ...é claro ...”Espinhos”. Que a circundavam do meio das costas ate a metade da cocha esquerda. Não. Aquilo não era uma mera tatuagem, aquilo era o meu “contrato”... A minha algema. O símbolo de tudo o que me aprisionava a ela.
Olhando-a me lembrei, subitamente, de uma história que li na infância.
“(...) Havia um lindo jardim que era morada de uma serpente, e suas escamas eram como espelhos que refletiam os desejos dos homens. Mas ao mesmo tempo em que encantava a beleza da serpente escravizava a alma daqueles que a ousassem ver (...)”
E ela era como serpente mítica... Que cativava ao mesmo instante que roubava a alma e eu... O menino curioso que se perdia no jardim.
Eu tentava, em vão, ler seus pensamentos. Seus olhos, encobertos pelos cabelos, ainda me pareciam tão vazios como sempre. Porem, agora, havia um “brilho”, algo a me desafiar.
Passou a mão entre as minhas pernas e acariciou minha virilha por sobre a calça. Eu me arrastei e me sentei recostado na cabeceira da cama, enquanto puxava o corpo quente dela para cima do meu. Olhei-a nos olhos por alguns segundos. Em silêncio absoluto... Sentia-me um eremita frente a um oásis, meus lábios salivavam de uma sede sobre-humana, minhas mãos tremiam incontidas e afoitas. Eu tentava controlar... Eu queria tocá-la ate que tudo o que era “eu” fosse absorvido e se tornassem parte do que era ela.
Com um movimento rápido, segurei-a pela nuca e a beijei. A carne macia dos lábios enquanto nossas línguas desesperadas se cruzavam... Não havia parte, por mais minúscula célula, do meu corpo que não gritasse por ela. As roupas e as colchas da cama eram empurradas, obstáculos de nossa fome.
Era ao mesmo tempo rígido e acolhedor. Nosso roçar de corpos, o suor, sal que se misturava os líquidos. Um transe frenético que colidia em uma explosão de espasmos irrequietos. Eu me transformava em algo irreconhecível, um animal faminto enquanto ela... Ela?! Mantinha-se tão meticulosa e calculista como sempre, sorria ao ver a totalidade de seus efeitos sobre mim.
_ Você disse que não voltaria... o que aconteceu? Não conseguiu viver muito tempo como um menino certinho não é... (ela continuava falando com ironia).
_Eu nunca fui certinho... E você sabe ...
_Ha! Você sempre teve medo... Medo do que os outros iriam pensar ...
_Diga o que quiser... eu não me importo.
_A verdade é que você sempre preferiu o caminho mais seguro... como agora... Você meu bem, prefere se prender aquela uma mosca morta frígida que no máximo deve fazer um “papai e mamãe” na cama. Só porque ela da um ótimo nó duplo nas suas gravatas... A Helena é uma pobre coitada.
A imagem de Helena, vestida de branco me veio a cabeça.. “O buquê de lírios brancos, o bordado cálido do véu que cobria as lágrimas”... e eu era como a tesoura que pede perdão por sua natureza afiada enquanto corta as asas de um anjo .
Algo dentro de mim pareceu se quebrar. Eu encarava a verdade (eu o “vilão”?!), de repente tudo se mostrava mesquinho e vulgar. Era como se uma parte da minha alma apodrecesse, e o liquido podre, decomposto, emanasse dos meus poros. Eu me sentia sujo. Eu odiava as minhas fraquezas, o meu desejo, meu descontrole... e sobre tudo... Eu odiava “ela” a minha frente.
Não percebi...
Os segundos em que me deixei dominar pela raiva foram suficientes...
Com um movimento forte e rápido de punho, bati na cara dela. O barulho do estalo da minha mão contra o rosto dela me fez recobrar a consciência. Mas já era tarde, estava feito. Um silêncio perturbador tomou o cômodo ...
Pensei ter visto uma lagrima... não sei dizer...
Ela revidou. Senti a palma de sua mão ainda quente estalar contra o meu rosto e queimar. E a energia que se dissipou no ar era como o ecoar das badaladas de um sino apocalíptico que se dissipava em nossos corpos. Ela levantou a mão novamente, armando outro tapa, mas eu a segurei pelos antebraços e a força das minhas mãos aflitas ficaram marcadas, rubras, em sua pele. Ela se debatia em resistência num acesso de raiva. E eu sem saber contê-la apenas podia evitar seus ataques .
“_Maldito !”
Com certeza alguém, no outro quarto, pode ouvir os gritos.
Seu corpo agora rígido, senti o ódio correndo por sua pele nua, ate que todas as reações se calaram....
... Numa frieza perturbadora...
... Ela se calou.
Agora, quieta, era assim como silêncio que vem antes do desmoronamento. E eu estava frente à montanha de pedras.
Ela saiu de cima das minhas pernas e se sentou na beira da cama. Passou a mão sobre os cabelos e os ajeitou durante alguns segundos. As costas nuas como outras tantas vezes eu havia visto. Ela virou levemente o pescoço e me observou por cima de seus ombros. Eu entrei em em choque, perdido entre as imagens dela, de Helena e todo o resto. Eu não sabia o que fazer.
_Eu espero que você esteja “satisfeito”...
Ela se levantou e caminhou nua ate o bar. Estava visivelmente ainda tensa, seu corpo me parecia ter um ar militar, frio e meticuloso. Pôs, num copo de uísque, dois dedos de vodka sem gelo e o bebeu em um gole só. Veio em direção a cama. Parou dois passos antes de alcançá-la e me encarou. Em um olhar, todo o desprezo que, agora, me dedicava.
Agachou-se na cabeceira e, com uma das mãos, pegou as roupas que estavam jogadas no canto, sentou-se em uma ponta distante, e começou a ajeitá-las para vestir.
_ Fique com sua noiva , com sua mãezinha. E que todos vocês sejam muito felizes com suas vidas patéticas e miseráveis, cobertos por essa fantasia suburbana.
Você não me deve satisfações.
Bom casamento... Mando meu presente pelo correio.
Rastejei sobre a cama em direção a ela, como um pecador pagando penitências. Eu estava arrependido e de certa forma sabia que o ela dizia... Não era mentira.
Ajoelhei-me atrás dela, tentei beijar suas costas, ela me impediu. O cheiro dos cabelos e a pele parecia uma droga alucinógena que me desligava de tudo mais. Eu não podia deixá-la ir.
_ Eu não sei o que vou fazer sem você...
E às vezes eu me sinto como num sonho louco...
Onde as coisas caem sobre mim e a minha vontade e eu só acordo quando estou com você.
_ Você foi a primeira coisa que eu realmente quis na vida, mas eu não sei se por fraqueza ou por culpa; mais do que isso... Do que temos dentro desse quarto... Eu não posso ter...
“A ciência dos meus desejos colididos”. Ao passo de cada segundo eu queria destruir tudo... E, ao mesmo tempo, consumi-la de uma vez só. “E ela?!” Ela sempre atrasada. Perdida entre seus vestidos (como eu os odeio! Por a deixarem tão insuportavelmente... “linda”.) ou nas vitrines de um shopping qualquer.
Ela entraria pela porta, sem me dizer nada, com um lindo sorriso entre os dentes, um misto de felicidade e deboche das minhas fraquezas... Como só ela sabia fazer. Jogaria a bolsa no canto da cama, sentaria sobre a minha escrivaninha e os papeis dos textos que escrevo. Acenderia um daqueles malditos cigarros baratos e diria o quanto, supostamente, ainda somos “iguais”.
Algo dentro da minha cabeça de repente gritou:
“SEU COVARDE!”
Como um estalo em dor daqueles provocados quando consumimos gelo rápido de mais. Minhas idéias se misturavam em um balé caótico de uma sopa de letrinhas servida “à moda” mandarim. Eu queria me levantar da cama, esperá-la no saguão do hotel (o lugar mais impessoal possível). Mas tudo que consegui foi ir ate a garrafa mais próxima e afogar meu pânico em uma doze dupla e seca de uísque.
Peguei o copo, sentei-me na cama e encarei o liquido âmbar dentro dele. Estava ali, na minha frente, pra mim, algo semelhante aos olhos dela: Um recipiente límpido e inocente, a garrafa mágica, o “corpo”, que guarda um pequeno demônio arredio. O que eu quisesse ou pretendesse fazer não mudaria nada. Já que eu não faria nada além do que ela planejasse ter.
Um ruído seco invadiu meus ouvidos e me acordou de meu “pequeno transe”. O barulho dos saltos finos sobre o piso de madeira velha dos corredores. Como o “tic tac” de uma contagem regressiva que antecipa uma explosão eminente. Cada vez mais... E mais perto, fazendo os pêlos do meu corpo se arrepiarem de uma vez só.
Os passos pararam frente a minha porta. E mais do que os três meses que haviam se passado, aquele segundo de silêncio era eterno e enlouquecedor.
Eu pensei
Terminar tudo. Pedi-la em casamento... vi a vida que teríamos daqui a oito anos, os filhos e o divórcio. Ou algemá-la na cama, nua, e deixá-la sem as chaves. Matá-la com o abridor de cartas e enrolar seu corpo gélido no tapete persa. Mas eu não soube me decidir... Então, permaneci calado... Imóvel, tão petrificado quanto o mogno dos moveis do quarto. O que eu podia fazer? Ela era minha maior fraqueza. E ela sabia.
Ao passo que a porta era aberta senti aquele “velho conhecido” invadir o quarto: O perfume dela, que pra mim era um tipo de veneno tóxico que, ao mesmo tempo, inspirava e me fazia gostar menos de viver.
Ela fez como eu previ. Passou, me roubou o copo, e sentou-se sobre a escrivaninha. Cruzou as pernas deixando desvendar carne da cocha branca entre o preto do vestido e a meia. Olhei mais um pouco e revi uma pequena parte da tatuagem, as rosas vermelhas que ornamentavam meus sonhos mais impuros.
Ela bebeu um pouco do uísque e pôs o copo em cima de algumas das minhas folhas. Acendeu um cigarro e o tragou. O toque tão delicado... Tão “na ponta dos dedos”... Que às vezes parecia ter desprezo às coisas que tocava.
_ Como vai meu bem?
Ela interrompe meus pensamentos, tragou mais uma vez o cigarro, soltou uma nuvem de fumaça e continuou. Eu tinha que admitir: ela tinha sua própria neblina e aquilo lhe trazia uma aura de mistério particular
_ Eu senti saudades.
A respondi com um olhar cético.
_ Serio! Eu senti saudades... mas achei melhor não interromper sua vidinha tão “harmoniosa” ... Eu até pensei em te ligar...
Ela tragou mais uma vez e soltou à fumaça em um suspiro mais lento que o comum... Ela fazia bem seu papel, como uma atriz veterana, que sabia se aproveitar de cada momento em que a minha força de vontade me traia.
_Mas você sabe como sou desorganizada... E sempre acabo perdendo os números... Enfim... Como você está?
Respondi em um lance áspero e curto, buscando me esquivar de detalhes, agora, indesejados.
_ Bem.
Ela deu um leve sorriso como quem tivesse obtido mais respostas do que eu havia dado.
_ Ótimo! Estou satisfeita. Um dia desses eu passei pela Avenida Passos e vi seu novo livro na vitrine de uma livraria(e ela continuou com ar de riso). Você bem que podia ter me mandado um exemplar autografado, seu mal agradecido! A final... Você sempre disse que eu era “sua fonte inspiração mais promissora”.
_Desculpe. Erro meu. Te mando um de presente de natal.
_ Que delicado... Mas eu esperava “outro” tipo de presente... (ela sorriu com todas as más intenções do mundo e continuou) E como vai a vida? A família? Sua mãe ainda continua me vendo como uma das pragas do Egito? (deu um leve sorriso)
_ Sim... Ela tem suas razões pra isso... (ressaltei)
_E... Como vai Helena? A mesma garotinha ingênua de sempre... Que acredita que isso são as consultas com seu analista?
“Helena”... Ao pensar nela um nó acido subiu garganta acima e me engasgou.
_Sim. Ela esta bem. (parei por um instante... e disse sem mais rodeios) Nos casaremos no sábado.
Eu vi as feições dela se mutarem. E a ironia, tão natural, que tagarelava se cala, dando lugar a um silêncio áspero.
Entretanto, a surpresa não era nada que não pudesse contornar. E com uma maestria “divina” ela recompôs sua mascara, pegou o copo, deu um grande gole, sorriu, e voltou ao tom habitual.
_ Bom... Meus parabéns... Acho que não serei convidada pra ser uma das madrinhas, eu suponho. (Bebeu o resto do uísque que havia no copo e o pôs novamente sobre as folhas.)
_ Sim. A sua presença não é esperada... E só faltam dois dias.
_ Se quer posso te dar meus “pêsames” na cerimônia religiosa... Vai que a sua mãe resolve testar a teoria dela sobre “eu e água benta”?... E eu detestaria manchar um dos meus vestidos Prada.
Ela me fitou por instantes ate que um sorriso cínico e dissimulado viesse à tona. Levantou-se, pôs a guimba do cigarro no cinzeiro, ajeitou os cabelos... E o mover de seus braços e dorso me seduziam com peças de um jogo hipnótico do qual meus olhos não conseguiam se desvencilhar. Veio em minha direção, andando calma e graciosamente, uma tigresa escondida na savana a espreita do jantar.
Seus olhos me devoravam... E os meus... A ela.
Ela se aproximou e se debruçou sobre o meu corpo, me empurrando para a cama, deixando meu rosto imerso nos odores que sua nuca e cabelos exalavam. Sentia o toque da ponta macia de seus dedos acariciarem meu peito sobre a blusa, quase que como gotas de água gelada, que causa arrepios inesgotáveis, quando correm sobre o corpo quente.
Eu podia sentir o hálito quente de sua boca sobre meu ouvido enquanto ela sussurrava besteiras.
_ Hum... Então isso se torna a sua... “Despedida de solteiro”. Que pena... Você deveria ter chamado mais algumas velhas amigas... Quem sabe... Nós nos divertiríamos juntos.
Ela levantou seu dorso, deixando-me preso entre suas pernas enquanto retirava o vestido. O correr do tecido sobre a pele... O perfume e o toque... Era como se cada detalhe dela fosse um verso de um feitiço antigo.
Agora eu podia contemplar a mais perfeita, integra, imagem... “As Rosas”... O vermelho-sangue que tingia... Um desenho lindo. Sim. Eu o conhecia melhor ate do que os meus próprios versos... Eram quinze rosas. Algumas ainda em botão... outras... desabrochadas, “Colombianas”, grandes e vivazes... envoltas em um ramo de folhagens e ...é claro ...”Espinhos”. Que a circundavam do meio das costas ate a metade da cocha esquerda. Não. Aquilo não era uma mera tatuagem, aquilo era o meu “contrato”... A minha algema. O símbolo de tudo o que me aprisionava a ela.
Olhando-a me lembrei, subitamente, de uma história que li na infância.
“(...) Havia um lindo jardim que era morada de uma serpente, e suas escamas eram como espelhos que refletiam os desejos dos homens. Mas ao mesmo tempo em que encantava a beleza da serpente escravizava a alma daqueles que a ousassem ver (...)”
E ela era como serpente mítica... Que cativava ao mesmo instante que roubava a alma e eu... O menino curioso que se perdia no jardim.
Eu tentava, em vão, ler seus pensamentos. Seus olhos, encobertos pelos cabelos, ainda me pareciam tão vazios como sempre. Porem, agora, havia um “brilho”, algo a me desafiar.
Passou a mão entre as minhas pernas e acariciou minha virilha por sobre a calça. Eu me arrastei e me sentei recostado na cabeceira da cama, enquanto puxava o corpo quente dela para cima do meu. Olhei-a nos olhos por alguns segundos. Em silêncio absoluto... Sentia-me um eremita frente a um oásis, meus lábios salivavam de uma sede sobre-humana, minhas mãos tremiam incontidas e afoitas. Eu tentava controlar... Eu queria tocá-la ate que tudo o que era “eu” fosse absorvido e se tornassem parte do que era ela.
Com um movimento rápido, segurei-a pela nuca e a beijei. A carne macia dos lábios enquanto nossas línguas desesperadas se cruzavam... Não havia parte, por mais minúscula célula, do meu corpo que não gritasse por ela. As roupas e as colchas da cama eram empurradas, obstáculos de nossa fome.
Era ao mesmo tempo rígido e acolhedor. Nosso roçar de corpos, o suor, sal que se misturava os líquidos. Um transe frenético que colidia em uma explosão de espasmos irrequietos. Eu me transformava em algo irreconhecível, um animal faminto enquanto ela... Ela?! Mantinha-se tão meticulosa e calculista como sempre, sorria ao ver a totalidade de seus efeitos sobre mim.
_ Você disse que não voltaria... o que aconteceu? Não conseguiu viver muito tempo como um menino certinho não é... (ela continuava falando com ironia).
_Eu nunca fui certinho... E você sabe ...
_Ha! Você sempre teve medo... Medo do que os outros iriam pensar ...
_Diga o que quiser... eu não me importo.
_A verdade é que você sempre preferiu o caminho mais seguro... como agora... Você meu bem, prefere se prender aquela uma mosca morta frígida que no máximo deve fazer um “papai e mamãe” na cama. Só porque ela da um ótimo nó duplo nas suas gravatas... A Helena é uma pobre coitada.
A imagem de Helena, vestida de branco me veio a cabeça.. “O buquê de lírios brancos, o bordado cálido do véu que cobria as lágrimas”... e eu era como a tesoura que pede perdão por sua natureza afiada enquanto corta as asas de um anjo .
Algo dentro de mim pareceu se quebrar. Eu encarava a verdade (eu o “vilão”?!), de repente tudo se mostrava mesquinho e vulgar. Era como se uma parte da minha alma apodrecesse, e o liquido podre, decomposto, emanasse dos meus poros. Eu me sentia sujo. Eu odiava as minhas fraquezas, o meu desejo, meu descontrole... e sobre tudo... Eu odiava “ela” a minha frente.
Não percebi...
Os segundos em que me deixei dominar pela raiva foram suficientes...
Com um movimento forte e rápido de punho, bati na cara dela. O barulho do estalo da minha mão contra o rosto dela me fez recobrar a consciência. Mas já era tarde, estava feito. Um silêncio perturbador tomou o cômodo ...
Pensei ter visto uma lagrima... não sei dizer...
Ela revidou. Senti a palma de sua mão ainda quente estalar contra o meu rosto e queimar. E a energia que se dissipou no ar era como o ecoar das badaladas de um sino apocalíptico que se dissipava em nossos corpos. Ela levantou a mão novamente, armando outro tapa, mas eu a segurei pelos antebraços e a força das minhas mãos aflitas ficaram marcadas, rubras, em sua pele. Ela se debatia em resistência num acesso de raiva. E eu sem saber contê-la apenas podia evitar seus ataques .
“_Maldito !”
Com certeza alguém, no outro quarto, pode ouvir os gritos.
Seu corpo agora rígido, senti o ódio correndo por sua pele nua, ate que todas as reações se calaram....
... Numa frieza perturbadora...
... Ela se calou.
Agora, quieta, era assim como silêncio que vem antes do desmoronamento. E eu estava frente à montanha de pedras.
Ela saiu de cima das minhas pernas e se sentou na beira da cama. Passou a mão sobre os cabelos e os ajeitou durante alguns segundos. As costas nuas como outras tantas vezes eu havia visto. Ela virou levemente o pescoço e me observou por cima de seus ombros. Eu entrei em em choque, perdido entre as imagens dela, de Helena e todo o resto. Eu não sabia o que fazer.
_Eu espero que você esteja “satisfeito”...
Ela se levantou e caminhou nua ate o bar. Estava visivelmente ainda tensa, seu corpo me parecia ter um ar militar, frio e meticuloso. Pôs, num copo de uísque, dois dedos de vodka sem gelo e o bebeu em um gole só. Veio em direção a cama. Parou dois passos antes de alcançá-la e me encarou. Em um olhar, todo o desprezo que, agora, me dedicava.
Agachou-se na cabeceira e, com uma das mãos, pegou as roupas que estavam jogadas no canto, sentou-se em uma ponta distante, e começou a ajeitá-las para vestir.
_ Fique com sua noiva , com sua mãezinha. E que todos vocês sejam muito felizes com suas vidas patéticas e miseráveis, cobertos por essa fantasia suburbana.
Você não me deve satisfações.
Bom casamento... Mando meu presente pelo correio.
Rastejei sobre a cama em direção a ela, como um pecador pagando penitências. Eu estava arrependido e de certa forma sabia que o ela dizia... Não era mentira.
Ajoelhei-me atrás dela, tentei beijar suas costas, ela me impediu. O cheiro dos cabelos e a pele parecia uma droga alucinógena que me desligava de tudo mais. Eu não podia deixá-la ir.
_ Eu não sei o que vou fazer sem você...
E às vezes eu me sinto como num sonho louco...
Onde as coisas caem sobre mim e a minha vontade e eu só acordo quando estou com você.
_ Você foi a primeira coisa que eu realmente quis na vida, mas eu não sei se por fraqueza ou por culpa; mais do que isso... Do que temos dentro desse quarto... Eu não posso ter...
Continua...